Maria Lacerda de Moura

AUTOBIOGRAFIA*

Nasci a 16 de maio de 1887, em Manhuassú, Minas Gerais. Aos 5 anos de idade fui para Barbacena (MG), onde estudei as primeiras letras em um colégio de Irmãs de Caridade. Durante os 4 anos em contato com a religião católico-romana, eu quis ser irmã de caridade e sonhava todo aquele misticismo dogmático; entretanto era mais medo do inferno, eu imaginava que, se lá fosse ter, imediatamente passaria para o lado dos demônios. Preferia, portanto, martirizar a martirizada…

Belo despertar espiritual!

Meu pai, anticlerical, espírito convicto, quando sentiu, talvez, que essa educação teria influencia sobre nosso espírito, (meu e de minha irmã, mais moça do que eu), tirou-nos do colégio, onde também, apesar de minha pouca idade (dos 6 aos 10 anos) percebi o espírito de classe, de casta e de dominísmo entre os colegiais e respectivas famílias, no trato aos ricos, aos potentados, e, no desprezo e exploração para com os pobres, os humildes e os de cor. Foi uma das belas experiências de minha vida. E quem sabe a sabedoria com que meu pai agiu, confiante em si mesmo, para, com o exemplo, nos apontar rumo diverso? Não sei. Experiência que eu não tentaria de modo algum.

Da religião católico-romana passei a frequentar sessões espíritas! Li, conheci de perto o que é o espiritismo religioso de sessões e preces e mediunismo, sob todos os aspectos.

O medo do inferno foi substituído pelo pavor dos “espíritos”! Criei-me apavorada, numa atmosfera de horror e crença.

Em breve, uma mistura de catolicismo e espiritismo bailava no meu espírito de criança.

Mas, predominava em tudo – o medo.

Com a puberdade, vieram também as manifestações estudadas em Freud, as quais me assaltavam à noite em pesadelos em que tudo se confundia: inferno, demônios e despertar sexual. Acordava horrorizada com os meus “pecados”… E o sistema nervoso ressentiu-se fortemente e o desequilíbrio ocasionado por tantas e tão contínuas emoções e outras mais (que não vem ao caso narrar), devidas à educação também baseada no medo dos castigos severos e até mesmo castigos físicos, esse desequilíbrio nervoso, além de diátese, de hereditariedade nervosa, acrescida com a vida sedentária de estudos livrescos, desde a mais tenra idade, provocou cedo a “surmenage” no meu temperamento vibrante, exaltado, refreado por uma timidez doentia que me isola de tudo e de todos.

Essa necessidade de expansão cercada pela educação, depois, subjugada pela deslealdade de companheiras e pelos castigos injustos na escola, e no lar, me ensinou, muito cedo, a viver dentro de mim mesma. Senti que ninguém me compreendia. Minha timidez era ridicularizada por todos, a propósito de tudo. Deu isso em resultado quase a misantropia. Dias inteiros eu passava, desde muito criança, sem dizer uma só palavra. Depois, quando me interpelavam, tinha dificuldade em me exprimir: cultivavam a minha timidez!

Que esforço, mais tarde, para lutar comigo mesma!

Estudei, depois, na Escola Normal de Barbacena, onde fui professora de Pedagogia e Higiene. Meio estreitíssimo. Professores na maioria católicos, nem uma ideia. Disciplina de rebanho.

Casei-me por amor aos 17 anos de idade.

Em 1912 comecei a esboçar croniquetas para um jornal local. Depois, apontamentos de Pedagogia para as minhas alunas.

Em 1913 comecei a luta de ideias com uma pessoa de minha família! Precisava “mais moderação”. “Que expressões são estas?” “Certas verdades não se dizem”. “Mais cuidado”. “Não fica bem”. “Você vai mal…”

Que luta interior e que luta mantive com o “que poderão dizer?”

Em 1921 vim para São Paulo.

Um grupo de senhoras de Santos e São Paulo me veio procurar para fundar a “Federação Internacional Feminina”. Dois anos de experiências diárias me fizeram recuar “para todo sempre” de associações femininas. Hoje de quaisquer associações…

Já havia publicado “Em torno da Educação” (que horror!), livro patriótico, exaltado, burguesíssimo, cheio de preconceitos e dogmatismo. Não o reconheço mais.

Foi muito bem recebido pela crítica, aplaudidíssimo (pudera!). Se era a defesa incondicional da sociedade vigente! José Oiticica viu nele algo que lhe interessava sob o ponto de vista de uma sociedade futura rebelde. Conheci-o através de larga correspondência. Veio para mim com as mãos cheias de literatura revolucionária. Sorvi tudo aquilo e muito mais e dei um salto na minha evolução. A família alarmou-se. Novas lutas. Perdi o dogmatismo religioso espírita. Já era anticlerical.

Mas, o materialismo anárquico revolucionário não me bastava. Caos interior. Mais ou menos na mesma ocasião (1918-1920), como eu conhecesse o general Raymundo Pinto Seidil através da “Liga Barbacenense contra o Analfabetismo”, para a qual dei muito de minha energia, e como esse grande e admirável amigo visse em mim (ilusão!) a atividade no campo de ação de Annie Besant, presenteou-me com uma coleção de obras teosóficas. Li tudo, maravilhada.

Ao mesmo tempo os positivistas me mandaram do Rio, por intermédio de minha querida amiguinha Rosalia Teixeira Mendes, uma coleção de obras positivas e o grande Teixeira Mendes continuou a me fornecer leituras desse gênero. E eu lia sem interrupções, ofegante, enamorada do mundo novo “descoberto” pelo meu espírito, ávido de conhecimentos.

Rousseau me fez vibrar de entusiasmo, me fez chorar de comoção. Mas insatisfeita. Luta interior, ruínas e escombros, porém, nem um pequeno alicerce…

Em 1920 tive o grande prazer de conhecer meu nobre amigo Angelo Guido e suas mão e seu coração transbordavam de espiritualismo mais alto e amei profundamente a Schuré, Mabel Collins e Jinarajadasa. Senti trégua interior.

Logo após, uma luta maior, muito mais séria me levou ao paroxismo da exaltação. Sofri.

Um salto na escalada da minha evolução, a angustia e o despertar da vida interior, a alegria de viver intensamente dentro de mim mesma. O que foi o período de minha vida intensa, desde 1919, quando publiquei “Renovação” até 1926, nunca ninguém poderá saber: só a minha vida interior poderia dizê-lo e, hoje, sem o clarão e a intensidade do mundo projetado.

Quando parecia, a mim mesma, exausta de forças, sem fé religiosa, sem crença de espécie alguma, sem confiança no sonho revolucionário, fora já das sociedades a que havia pertencido, tendo mesmo me ausentado da Sociedade Teosófica, da “Co-maçonaria”, de tudo quanto precisa de ritual e espírito religioso estreito, das associações femininas e masculinas, depois de haver publicado a revista “Renovação” durante algum tempo (que luta!) depois do excesso de trabalho e excesso de emotividade, veio o período amargo de desalento e fraqueza física e dúvida e amortecimento.

A mim me veio a intuição de que era inútil todo esforço pró-sociedade.

Em que trabalhar?

Como Evoluir?

Qual a solução para os problemas humanos?

Onde encontrar uma nesga de felicidade?

Como servir ao gênero humano na sua evolução?

Onde está a verdade?

Como encontrar a paz interior?

Já havia publicado “A Mulher é uma degenerada”.

E foi nesse período de desalento, no meio dos escombros de ruínas, após o enterro de tantas ilusões e de todas as esperanças que publiquei “Religião do Amor e da Beleza”. É um livro cheio de contradições. O primeiro capítulo choca-se com o segundo. Um grande amigo, estudante nesse tempo, Jurandyr Manfredini, em a imprensa de Curitiba, posto não tenha penetrado bem o fundo do meu pensamento e a minha sensibilidade, encontrou esse desequilíbrio. Foi uma nova fase da minha evolução. Um dia hei de estudar, em autocrítica, essa fase e esse livro que é um grito de dor, o afirmar de novas possibilidades interiores para uma escalada mais alta. Logo depois de publicado o livro, acotovelei a tutela e o domínio de forças que me traziam acorrentada e respirei livremente mais uma etapa de vida. Quantos prejuízos, quantos preconceitos, quanta ideologia, quanta ideia errônea, sob a forma de arte, de beleza, de grandeza moral nos escraviza na razão e no coração!

“Religião do Amor e da Beleza” me trouxe além da exaltação dos adversários, outros amigos e outros sonhos. Entre a correspondência de aplausos a esse livro, um dia me veio uma carta admirável de A. Néblind, e o poema da vida interior de Florian-Parmentier La lumière de l’aveugle.

Fiquei encantada. Foi como um banho de luz por sobre o meu ser dilacerado. A. Néblind encontrou, no meu livro, algo de harmonioso com o poema do grande francês.

Melhor do que ninguém, vira a amargura das páginas de “Religião…” e mandou-me um raio macio de luz para aquecer o meu desespero. Em seguida me trouxe o coração incomensurável de Han Ryner e a sua sabedoria profunda e pôs na minha mesa de trabalho essa obra magnífica, de beleza ética, a filosofia do sorriso da dúvida e da música do sonho.

E com Han Ryner me veio a calma. Han Ryner me trouxe o desejo maior de uma purificação interior bem mais alta.

Com Han Ryner me veio a solução desejada.

Só agora, parece, penetrei um dos segredos da Vida.

Só agora senti o problema humano.

É o subjetivismo, é o “individualismo da vontade de harmonia”, é o “Conhece-te a ti mesmo para aprenderes a amar”, é o individualismo neo-estoico de Han Ryner que me iluminou a consciência e me deu a noção mais alta da liberdade ética.

Fraternismo e subjetivismo, amor e sabedoria, Jesus e Epicteto! Conhecer-se, realizar-se – para aprender a amar.

E tenho o direito e o prazer de sonhar a minha metafísica livre. E digo com Han Ryner: “O sim dogmático e o não dogmático estão bem perto um do outro. Sem o sorriso da dúvida e a música do sonho, nenhuma liberação é completa! Nem afirmar, nem negar: – sonhar”.

Livre de escolas, livre de igrejas, livre de dogmas, livre de academias, livre de muletas, livre de prejuízos governamentais, religiosos e sociais.

Tão antissocial quanto possível.

Resta o conhecer-me para tentar a minha realização. Um novo ponto de partida…

***

A meu pai devo muitíssimo do meu caráter. Venero a sua memória como qualquer coisa de santo dentro de mim mesma. Era uma alma grande, incompatível com a vida social.

Minha mãe tem orgulho de sua filha, orgulho de mãe… solidária com as minhas ideias, incondicionalmente, harmonizando-as materialmente com os prejuízos de sua educação, das tradições e da rotina…

Meu marido – meu melhor amigo, o mais dedicado, o que mais sofreu e o que mais lucrou, subjetivamente, através do esforço da minha evolução.

Uma dupla tragédia interior e o sentido mais alto da vida – além dos preconceitos da família de sangue ou da família legal. Nobre confidente, mas, não aparece na minha vida intelectual. O “marido” da escritora perde a sua individualidade. Aliás, todo “marido”… é uma instituição completamente desmoralizadora. Até a “Tró-lo-ló” classificou-o de “vira-lata”!…

Se o marido ordinário, o marido comum é o “cachorro vira-lata” – que sorte está reservada ao marido da escritora, ao marido da poetisa ou da pianista?

Assim, meu marido, pelo seu nobre caráter, e eu, defendendo a minha dignidade de ser livre, talvez acabemos nos divorciando dessa comédia do casamento legal.

Para sermos amigos não precisamos o selo do Estado. O divórcio tanto me interessa como o casamento: dispenso a lei na minha vida afetiva. Não. Dispenso na minha vida, todas as leis escritas. Mas casamo-nos quando não tínhamos ideias. Hoje, para o heroísmo de procurar pensar e procurar harmonizar a vida do pensamento coma ação, para nos defendermos da sociedade legal, para que a gente conserve a sua dignidade de ser humano – é preciso ir contra a lei, protestando se ela nos acolhe nas suas malhas, antes da idade da razão.

É preciso aprender a desligar-se, cada vez mais, do rebanho social.

E meu marido terá o prazer e a independência de deixar de ser apenas o “marido” – para ser considerado em si mesmo, como homem, uma criatura, um ser livre. Ele o quer e bem merece pela sua beleza interior.

E eu me desvencilharei das leis conjugais que me reduzem à categoria de propriedade privada de um cidadão, que me rebaixam à categoria de coisa, objeto, à situação deprimente de protegida e tutelada, sujeita à vontade e aos caprichos do “marido” e ao rigor das leis, como “esposa”.

Decididamente, temos que apelar para o divórcio – porque somos amigos e porque um sabe respeitar a dignidade humana do outro.

Marido, “cabeça do casal”… É ridícula a minha situação de “esposa perante a lei e a sociedade”, aceitando, com a aquiescência do silencio ou do conformismo, uma posição deprimente para a minha consciência de individualista. Nem eu me intitulo “cabeça” de coisa alguma, nem me sujeitaria ao papel de diretor espiritual ou diretor de consciência ou “protetor” para pensar pelos outros e nem a minha consciência aceita a ideia de estar sob a direção de qualquer “cabeça”, governada ou protegida ou tutelada por uma “cabeça” que a lei me deu…

***

É isso autobiografia? A minha biografia eu a vivo no silêncio da vida interior.

Os fatos exteriores nada importam: valem pelo despertar da consciência, após uma das tragédias interiores.

E a beleza dessas tragédias muito intimas, no cenário dos abismos de luz e sombra da alma humana, está no silêncio sobre em que se desenrolam dignamente, mudamente, iluminando o ser, na sua trajetória pela Vida em busca de uma libertação cada vez mais alta, para uma escalada além do Tempo e para além do Espaço…

Maria Lacerda

São Paulo, Dezembro de 1928.

 

* Reproduzido de MOURA, Maria Lacerda de. Autobiografia. O Combate, São Paulo, 3 ago. 1929. n.5110, p. 3.