Territórios-Rede em Movimento

 

 

 

 

 

 

INFORMAÇÕES:

Título: Territórios-rede em Movimento: a Ocupação da Biblioteca do Engenho do Mato
Autor: Luísa Marques Dias
Editora: Entremares
Idioma: Português
Encadernação: Brochura
Dimensão: 14 x 21 cm
Edição:
Ano de Lançamento: Março de 2023
Número de páginas: 192
Preço: R$ 30,00

ÍNDICE:

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PREFÁCIO:

Novos ciclos de manifestações populares eclodiram mundo afora no decorrer da segunda década deste século XXI, mobilizando corações e mentes interessadas não apenas em tomar parte neles, mas também em compreender seus motivos, inspirações, características e possíveis desdobramentos. No caso brasileiro, algumas das principais referências desse ciclo de protestos envolveram a organização dos diversos Comitês Populares da Copa por todo o Brasil, as Jornadas de Junho em 2013 e a onda de ocupações de escolas ocorrida em diferentes estados brasileiros em 2016.

Tais experiências ocorreram em diferentes partes do país e se inseriam em um contexto fortemente influenciado pelos ajustes sócio-espaciais decorrentes da crise global provocada pela sanha do capital financeiro que levou à existência e ao estouro da bolha especulativa do setor imobiliário estadunidense em 2007 e 2008. Em termos econômicos, tais ajustes foram estimulados pelo Estado brasileiro por programas de incentivo à economia de abrangência nacional ₋ como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) ₋, por grandes projetos de reestruturação urbana ₋ como o projeto Porto Maravilha, no município do Rio de Janeiro ₋ e pelos recursos que irrigaram a construção da infraestrutura necessária à recepção dos megaeventos esportivos ocorridos em 2013 (em todo o Brasil) e 2016 (no Rio de Janeiro, em particular), dentre outras formas. Já do ponto de vista político-institucional, por sua vez, esses ajustes cobravam seu preço por meio de processos que incidiam diretamente no cenário político-partidário nacional, como a deflagração das investigações reunidas sob a alcunha de Operação Lava Jato (a partir de 2014) e o golpe parlamentar direcionado contra a então presidenta da república em 2016.

Paralelamente a isso ₋ não como novidade completa, mas sim como continuidade de tradições importantes do campo da esquerda política ₋ a população desenvolvia também suas ações a partir de distintas formas de organização que eram, de alguma maneira, perpassadas por esse contexto político-econômico, seus eventos, seus clamores e temores. Em meio à diversidade de pautas, formatos organizativos, composição social e inspirações político-filosóficas do campo progressista, é sempre relevante lembrar que havia aqueles sujeitos que se engajavam em experiências que nutriam críticas às formas e processos organizativos já tradicionais no amplo espectro da esquerda nacional. Ao se alimentarem de reflexões e demandas por formas de organização política mais afeitas à horizontalidade e aos princípios da autogestão e auto-organização, tais grupos e ações renovavam as energias de um campo político específico que sustenta críticas e cultiva alternativas às práticas mais verticalizadas, vanguardistas e heterônomas que hegemonizam a esquerda ₋ mesmo que nem sempre fossem (ou sejam) bem-vistas pelo restante desse campo.

Algumas dessas experiências de organização política coletiva apostavam (e seguem apostando!) em dar continuidade à tradição que parte da esquerda tem ₋ sobretudo aquela com inspirações mais próximas ao campo libertário ₋ de construir espaços prefigurativos, caracterizados por serem locais onde seus protagonistas defendem a importância de se colocar em prática imediatamente os valores e relações que projetam para o mundo que desejam que exista futuramente. O que não é novidade em meio aos ativismos populares é que qualquer espaço desse tipo tende a atrair mais pessoas quando estes se propõem a responder a necessidades concretas do seu público-alvo. O resultado disso é a aproximação tanto de indivíduos já sensibilizados por formas afins de mobilização coletiva (ou que guardem algum tipo de estranhamento quanto às formas de fazer político que predominam na esquerda) quanto de pessoas que terão nesses espaços suas primeiras experiências de ativismo. Por essas e por outras, os espaços prefigurativos desempenham um papel crucial do ponto de vista político-pedagógico.

Luísa Marques Dias sabe muito bem o que pode acontecer quando princípios autogestionários, preocupações com a dimensão pedagógica das ações coletivas e demandas comunitárias reais se encontram e materializam em espaços de atuação política. Isso não só porque investigou o espaço autogerido que é objeto empírico deste livro ₋ a Biblioteca do Engenho do Mato (BEM), localizada na região oceânica do município de Niterói (RJ) ₋, mas também porque integrou as atividades realizadas na BEM, fez parte da coletividade e participou das dinâmicas responsáveis pela manutenção desse espaço. Além disso, longe do irrealismo de uma reflexão pretensamente neutra e objetiva, Luísa Dias demonstra a riqueza que emerge do reconhecimento do caráter situado da produção do conhecimento, pois em vez de ver seu envolvimento como um problema, tornou-o uma virtude constitutiva, motivadora e e que complexifica suas elaborações.
Seu trabalho, porém, vai além da tarefa de registrar uma experiência de auto organização popular que emerge nesse contexto turbulento da segunda década do século XX. Essa seria uma missão por si só importante, diga-se de passagem, pois a existência da BEM demonstra a potência da inventividade dos indivíduos e coletividades que compõem e vivem nas margens, mas que nem sempre buscam disputar o centro, fazer parte dele ou mesmo tornarem-se “novas centralidades”. A autora escapa da armadilha da simples descrição e aproveita o potencial que análises atentas à dimensão espacial possuem para brindar a leitora e o leitor com um interessante estudo de caso sobre um movimento social urbano brasileiro autogerido localizado na periferia do importante município de Niterói (RJ). Trata-se de algo pouco comum não só por abordar uma experiência de organização política horizontalizada, mas também porque os estudos de ativismos sociais urbanos brasileiros apenas em poucas exceções se dedicam a considerar a dimensão espacial dessas formas específicas de ação social ₋ como algumas pessoas já apontaram. Neste trabalho, a autora demonstra habilidade em explicitar essa dimensão, mesclando seus conhecimentos de geógrafa com um arcabouço que se alimenta de outras áreas próximas do conhecimento. Isso pode ser observado quando identifica a territorialização da praça pela RCEM como uma expressão da centralidade do espaço para as práticas dos ativismos sociais urbanos, por exemplo. Mas além disso, outra de suas grandes contribuições é exemplificar a relevância metodológica de se observar experiências como a da BEM a partir de duas lógicas espaciais distintas ₋ apesar de profundamente imbricadas: uma lógica espacial zonal, responsável por produzir uma espacialidade contínua (na qual está envolvida a definição e produção do seu espaço enquanto uma unidade de área ₋ o espaço da BEM propriamente dito, seu imóvel e a área contígua imediata); e uma lógica espacial reticular, ligada a uma espacialidade descontínua (capaz de explicitar como a BEM se constitui também a partir da sua participação em redes sócio-espaciais). Ao deixar nítido como essas duas lógicas cooperam para conformar concomitantemente a BEM em toda sua complexidade, diferenciando-a de outros espaços ao mesmo tempo que a articula e insere em uma totalidade espacial, Luísa Dias exercita um caminho metodológico promissor para os estudos interessados em como as ações dos ativismos sociais urbanos produzem suas próprias escalas geográficas e se valem dessa escalaridade para potencializar suas lutas em contextos como o da periferia de Niterói.

Não resta dúvida de que as formas de ação coletiva apenas ganham existência quando adquirem tempo e espaço, quando ganham lugar e momento. E obviamente que, uma vez entendidas como ações sociais localizadas no espaço, no tempo e na sociedade, tais experiências são carregadas das ambiguidades próprias dos processos de instituição da sociedade. Elas trazem consigo traços das estruturas e práticas políticas já existentes no mundo, mas ao mesmo tempo fazem parte do arquipélago de espaços-tempo de onde o “radicalmente novo” eventualmente emerge ₋ constituindo também, então, as bases para as ações futuras. Estes hibridismos, no entanto, só são vistos enquanto debilidades por abordagens que, além de essencializar o imbricado e conflituoso ambiente da produção sócio-espacial do mundo, possuem vínculos frágeis com as ações reais e concretas de tentativa de construção de novos mundos a partir do cotidiano. Não é o caso de Luísa Dias, que com este estudo sobre a BEM demonstra a capacidade popular de resgatar espaços do abandono e recolocá-los à disposição dos interesses da comunidade do entorno por meio da ação direta e de processos de constituição de coletividades autogeridas. Com sua seriedade e conteúdo, Luísa oferece insights poderosos para aquelas pessoas que conseguem reconhecer que não há mais tempo para deixar para o amanhã a invenção de novos mundos.

Matheus da Silveira Grandi