Transdominação no Haiti (1791-1826)

 

 

 

 

 

 

INFORMAÇÕES:

Título: Transdominação no Haiti (1791-1826): Uma leitura
libertária da primeira revolução social vitoriosa nas Américas
Autor: Dmitri Prieto Samsónov
Editora: Entremares
Idioma: Português
Encadernação: Brochura
Dimensão: 14 x 21 cm
Edição:
Ano de Lançamento: Agosto de 2020
Número de páginas: 144
Preço: R$ 30,00

ÍNDICE:

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APRESENTAÇÃO:

O livro que o público brasileiro tem em mãos é resultado de uma pesquisa original, criativa e instigante, produzida pelo antropólogo e querido companheiro russo-cubano Dmitri Prieto Samsonov[1], curiosamente premiada e publicada em 2010 em La Habana pela coleção de ensaios Pinos Nuevos da seção editorial de Ciências Sociais do Instituto Cubano do Livro. O texto surpreende pelo tipo de abordagem e o esforço de ampliação do leque interpretativo a respeito da Revolução Haitiana, apresentando insights e perspectivas de caráter libertário e antiautoritário, além de alusões diretas a autores notadamente anarquistas.

O processo revolucionário haitiano é um assunto bastante desconhecido entre nós. O silêncio e a aparente irrelevância do tema se justificam diante da natureza do processo: a primeira revolução social das Américas foi uma insurreição anticolonial levada a cabo por uma população de pessoas negras escravizadas, em 1791. Mas o livro de Dmitri não pretende ser apenas uma exposição sucinta de uma história marginalizada. O contexto haitiano se revela uma espécie de cenário privilegiado para a reflexão acerca das vicissitudes das dinâmicas de dominação, passíveis de derivar dos próprios movimentos de emancipação, em determinadas condições, uma complexa matriz de reordenamento de hierarquias e relações de poder que são, isso é fundamental, fruto mesmo da ruptura revolucionária. Assim nasceu o fértil conceito de transdominação cunhado pelo autor.

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Provavelmente entre muitos brasileiros e brasileiras, o Haiti não seja mais do que uma incômoda evocação de tragédias. O país mais pobre das Américas, que compartilha espaço em uma diminuta ilha com a República Dominicana, em 2010 foi vitimado por um terremoto que ceifou a vida de mais de 300 mil pessoas. No entanto, os desastres naturais estão longe de oferecer uma explicação plausível e aceitável para a situação que faz do Haiti uma espécie de território “modelo” da insegurança social, da vulnerabilidade ambiental-sanitária e da precariedade econômica.

Há muitos pontos de contato entre a história do Brasil e a do Haiti. Em 1986, o primeiro governo eleito por sufrágio geral naquele país, que também se distanciava criticamente das tradicionais autocracias (a maioria militares) implantadas com apoio do governo dos EUA na região latino-americana e caribenha, ao contrário dos outros movimentos de transição “democrática”, foi ostensivamente sabotado e instabilizado por forças internas ligadas aos interesses ianques e franceses. O presidente eleito Jean-Bertrand Aristide, um padre da Teologia da Libertação que liderava um movimento de forte base civil e popular, entre as óbvias e inevitáveis bandeiras de ordem democratizante e socializante, propunha a cobrança da dívida colonial devida ao país pela França. É sempre bom recordar o amargo sabor do açúcar: no século XVIII, a então colônia francesa de Santo Domingo (que englobava toda a ilha antes conhecida como Hispaniola, devido ao precedente domínio espanhol) ocupava nada menos que a posição de maior produtora de cana de açúcar do mundo, o que lhe rendeu o título de Pérola do Caribe. Cabe mencionar que a mão de obra que movimentava a economia baseada naqueles poderosos engenhos era a de pessoas negras sequestradas e compradas em distintas regiões do continente africano.

O balanço do curto intervalo democrático haitiano não foi nada consolador. De 1986 até 2004 o Haiti padeceu dos mais atrozes sintomas produzidos em povos esquartejados e instrumentalizados por políticas de polarização social patrocinadas por potências estrangeiras. E foi sob o imperativo de neutralizar a “guerra civil” (quer dizer, a instabilidade induzida que gerou um golpe de Estado), em curso naquele país, que a ONU decidiu em 2004 pela implantação da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH), sob a liderança militar do governo brasileiro (isso mesmo, o primeiro governo Lula).

Não é o caso de realizar uma análise da presença político-militar do Brasil no processo de “pacificação” do Haiti. O que retoricamente apresentava a aura de ajuda humanitária dos abnegados capacetes azuis, aproximados 13 anos de funcionamento, foi um processo inegável de ocupação estrangeira em um país atravessado por explosões de violências oriundas de estruturas de desigualdade, racismo e opressão centenárias. O saldo da operação é acessível para aqueles que estão dispostos a buscar informações sobre assunto. Para mencionar dados, digamos, mais sensíveis, talvez baste as 2000 mil denúncias de estupros, 300 envolvendo crianças, contra militares da MINUSTAH[2]. Entretanto, como era de se esperar, para o governo e os militares brasileiros a missão foi um sucesso. E é compreensível se nos atentarmos para as entrelinhas: o Haiti foi o laboratório de teste para o uso de forças militares para fins de pacificação de populações civis etnicamente diferenciadas em situação de extrema miserabilidade e na órbita de grupos violentos (como o crime organizado). A gestão da ordem nas favelas brasileiras, e projetos como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), certamente ganharam muita expertise com isso. A missão também favoreceu a projeção profissional e política de algumas lideranças no interior das nossas Forças Armadas, com desdobramentos que podem ser melhor observados a partir do início do governo de extrema-direita de Jair Messias Bolsonaro (basta observar os antecedentes dos quadros militares que formam seu gabinete). No Haiti as forças da ordem brasileira tentaram, sem muito sucesso e sob o verniz humanitário, realizar a tarefa gerencial de capitão do mato que lhes é constitutiva: botar o/a negro/a no seu devido lugar.

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Brasil e Haiti como projetos de nação moderna possuem muitas afinidades. E a história contemporânea desses países apresenta episódios de intersecção inesperados, como o mencionado acima. Na sociogênese da cultura e da população brasileira há uma forte e inegável presença do chamado “elemento negro”, ou seja, das diversas etnias e grupos sociais que serviram de matéria-prima para a construção da empresa colonial. Para além do legado escravista e acumulativo que permitiu o florescimento do Império lusitano e do Estado brasileiro, há signos linguísticos, comportamentais, corporais, morais, estéticos e espirituais que estão disseminados em nossas relações sociais e em nossa atmosfera cultural, com diferentes graus de reconhecimento e legitimidade. Nesse aspecto, tradições religiosas reinventadas e rebeldias atravessaram boa parte das experiências de auto-organização das populações negras que lograram escapar do cativeiro, na disseminação do que a historiografia denominou por quilombos (entre nós) e cimarrones (no Haiti e boa parte da América não lusitana). E no caso da antiga colônia de Santo Domingo, uma extensa rede clandestina de apoio mútuo, proteção e circulação de pessoas, objetos e ideias foi fundamental para criar as condições da insurreição anticolonial. Hoje podemos conjecturar que nossa história certamente teria sido outra se Palmares não tivesse sido exterminada e houvesse inspirado, ou retroalimentado, a multiplicação de outros territórios rebeldes…

De todo modo, uma das grandes contribuições do livro, que segue com propriedade uma cadência explicativa e narrativa vertebral das melhores obras sobre o assunto (como os “Jacobinos Negros”, de C.L.R. James), é nos oferecer uma chave de leitura para compreender melhor o fracasso do processo revolucionário no Haiti, no sentido de constituir uma sociedade efetivamente emancipada para os ex-escravos. Sem pretender antecipar aqui para o/a leitor/a os elementos apontados por Dmitri como centrais para perceber como se deu o fenômeno da transdominação durante a Revolução Haitiana, apenas gostaria de ressaltar que, do ponto de vista de uma história comparada do que poderíamos chamar de “revoluções abortadas” (como as chamadas por Dmitri “revoluções de intenção socialista” que fundaram “Estados Operários ou Populares”), temos aqui uma ferramenta conceitual que tem plenas condições para se desenvolver e se converter, para pesquisadores e ativistas, em uma bússola nada desprezível.

O conceito de transdominação se nutre de pressupostos normativos e epistemológicos convergentes com o melhor e mais robusto da tradição libertária. Quando os anarquistas insistem na questão da abolição do Estado, por exemplo, o que está em jogo não é um mero capricho pueril da infância do movimento operário, uma afetação esquerdista ou algo do gênero. Trata-se de uma preocupação ética, mas fundamentalmente sociológica, a respeito dos arranjos de relações de poder e seus respectivos mecanismos institucionalizados de dominação resultantes. Antes, durante e depois da Revolução.

Nesse sentido, o livro de Dmitri que ganha merecida tradução aqui no Brasil[3], nesses tempos de obscurantismo, neofascismo, conformismo e resignação intelectual, é simultaneamente um generoso presente e um pequeno ato de subversão.

Cassio Brancaleone
Erexim, abril de 2020
ano da peste

NOTAS:

[1]Devo mencionar que partilhamos um espaço de reflexões sobre pesquisa social e ativismo há quase uma década, junto a outro/as valioso/as companheiro/as, no âmbito do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO): o Grupo de Trabalho Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes (AC&SE).

[2]Para maiores informações sobre a atuação dos militares brasileiros no Haiti, recomendo a leitura da tese de doutorado de Miguel Borba Sá: HAITIANISMO: COLONIALIDADE E BIOPODER NO DISCURSO POLÍTICO BRASILEIRO. PPGLRI. PUC-RS. 2019.

[3] A viabilização dessa obra em língua portuguesa seria impossível sem o metódico trabalho de tradução de Miguel Angel Suarez, e o apoio incondicional e incentivo do amigo Alexandre Samis.